sábado, 22 de abril de 2017

Um dia

            O que você faz num espaço de 24 horas? Na verdade é difícil pensar em 24 horas ativas, considerando dias normais em que temos que dormir seis ou oito horas. Pensando nas horas gastas dormindo, eu tenho inveja de mim há uns três anos atrás. Eu era feliz e não sabia. Mas nos últimos anos passei horas e mais horas em claro... Não lembro quando foi a última noite que eu dormi bem. Passei mais tempo do que deveria, e achava que conseguia, num emprego insuportável. Sou obrigada a conviver com a irmã do namorado da minha melhor amiga. Evito brigas, mas ela acha que sou sua inimiga, tudo isso porque ela descobriu que uma vez dei um beijo (sério, só um beijo mesmo e nem gostei) no atual namorado dela. Eu nem conhecia a menina, nem me lembrava do cara. Não sei onde ela resgatou uma mensagem antiga numa rede social em que ele falava de mim com algum amigo. Ainda não entendo e nem quero saber os detalhes. Prefiro ficar longe deles. Ela é louca. O caso é que ela me odeia e sempre está no meu apartamento, dando desculpas para falar com a Maria (a única razão pela qual eu a aturo). Se não bastasse, o emprego ruim e a minha “inimiga” o dia todo na minha casa, ainda tem o meu ex-chefe. Júlio, um cara alto e bastante charmoso, mas muito insuportável e machista. Passou semanas me perseguindo, tudo porque não entrei no “joguinho” de sedução dele.
            Se forem pensar mesmo, talvez achem que eu exagero um pouco. Mas tentem estar no meu lugar por um momento. Você é animada, sonhadora e tem milhares de planos. Acaba a faculdade achando que o a vida iria começar a dar certo. Acaba encontrando um emprego muito bom (no começo era mesmo muito bom, porque sempre gostei de decoração). Pensa que aquilo seria um começo, pra ter uma experiência. Certo, emprego super válido. Eu poderia pagar as minhas contas, viver num apartamento com a minha melhor amiga (eu a amo e isso é o que me mantêm firme), viajar um pouquinho nos feriados e continuar sonhando, investindo um pouco do meu tempo na carreira de romancista (escrevo nas horas vagas e sonho com o futuro). Mas depois de um tempo conheci a minha “inimiga”, chamada Nicole, e ela fez de tudo para me cutucar. Em alguns momentos eu simplesmente fingia que ela não existia e conseguia seguir a minha vida. O trabalho piorou. Mudou de chefe. Júlio num primeiro momento parecia ótimo, além de ser muito gato. Passaram uns dias e ele surgiu com algumas regras. Nós não poderíamos ter nada nas redes sociais que mostrasse mais de uma carreira (eu não poderia divulgar os pequenos textos que eu escrevia, que era uma forma de mostrar para as pessoas algo mais que eu fazia. Só podia compartilhar coisas da empresa, que é uma revista impressa e online de decoração.), não podíamos usar os contatos conhecidos através da empresa para beneficio particular (eu não queria passar o contato para uma empresa rival, mas haviam certos eventos que eu simplesmente esbarrava com algum autor que poderia me ajudar. Mas ele sempre estava por perto mandando sinais de censura.). Ele simplesmente fazia do convívio no trabalho um momento terrível. Eu estava me acabando.
            Prazos desnecessários, silêncio absoluto na redação (sério! ele não gostava que conversássemos, mas não tem como. Um gostava de ajudar o outro, pelo menos quando ele não era o chefe.). De repente o meu trabalho pareceu um campo de disputa. As pessoas o odiavam, mas tentavam chamar a atenção dele, puxavam o saco mesmo. E eu não tinha paciência para aquilo tudo. Pensei que não tinha como piorar. Mas pensei errado. Um dia, eu simplesmente fiquei louca e aceitei ir a um bar com os colegas de trabalho. Quem apareceu? O chefe. Credo. Eu tinha um nojo inexplicável dele. Só trabalhando com ele pra entender. Eis que a criatura resolve me paquerar. Oi? Não acreditei, ri muito, ainda mais porque eu estava um pouco bêbada. Ele achou aquilo um absurdo, que eu não poderia rejeitá-lo. Fez um escândalo e disse que ele era idiota por “quase” se apaixonar por mim e que eu era mais idiota ainda por não querer ficar com ele. Sai daquele lugar brava... Tudo piorou. Qualquer coisa ele brigava comigo, sempre fazendo escândalos e exagerando, para chamar a atenção de todos para mim. Apenas uma colega me dava um apoio e me ajudava falando mal dele.
            Comecei a ter problemas de concentração. Travei. Não conseguia continuar escrevendo o meu livro. Tive ansiedade e passei noites em claro, apenas olhando para a tela do computador. Nem me socializar eu conseguia. Nem me lembro quando foi a última vez que sai com algum homem. E no auge da minha carência, a minha querida “inimiga” surge fazendo escândalos. “Fica longe do meu Gigi. Ele nunca gostou de você. E nós vamos nos CA-SAR!” Olhei surpresa pra ela, não acreditando naquilo. Ela levava tudo muito a sério. Toda hora ficava falando, “estou noiva”, “já escolhi o vestido”, “Maria, você não pode levar nenhuma acompanhante”, “Ah, foi lindo ele me pedindo”. Fiquei com tanto nojo que passei a caminhar todas as noites, para evitar encontrar com ela. Criei um habito que me acalmava e ocupava o meu tempo (eu não conseguia dormir mesmo). Até consegui voltar a escrever um pouco (não como antes)... Eu caminhava uns cinco quilômetros até uma praça, carregando um livro que eu já tinha lido pela metade. Terminava de ler o livro e deixava no banco. Deixava três livros por semana naquela praça. E alguém pegava os livros. Porque no outro dia não estava mais ali. Tenho a sensação de que era a mesma pessoa. Não sei explicar, mas sinto isso. Não me importo. Eu queria apenas passar para alguém aquele meu prazer. E espero, sinceramente, que essa pessoa passe adiante o livro. Sorrio todas as vezes que imagino a pessoa surpresa ao ler um livro diferente. Será que ela tem as mesmas impressões que eu?
            Então o dia de hoje começou. Parece interminável. Acordei as 6hrs, como sempre, depois de dormir quatro horas (um avanço). Tomei um chá e duas torradas, porque eu estava inexplicavelmente sem fome (teria ido trabalhar sem comer, mas acredito que passaria mal). Passei a manhã escrevendo um texto de cinco páginas para a revista impressa. Eu gostava de fazer isso, quando o Júlio não estava me encarando. Ele estava concentrado na sala dele naquela manhã. Terminei meu texto, muito rápido e fiquei muito feliz. Encontrei nas minhas coisas um rabisco de um romance que eu estava escrevendo em casa na noite anterior e comecei a ler. Eu pensava que não teria problema, desde que ninguém estivesse vendo. E eu já tinha terminado meu trabalho (quatro horas adiantada). Achei que roubar 15 minutos do meu trabalho para reler o começo do que seria um livro no futuro não fosse errado. Enganei-me, de novo. Se fosse o antigo chefe até iria pedir pra ler. Júlio se aproximou, fiquei to nervosa que meu papel caiu no chão, perto dos seus pés. Ele pegou e leu a primeira linha. Aí o escândalo começou. Falou, falou, até engasgar. Tive que guardar um riso. E pra piorar, ele zombou do meu texto. A parte mais sensível e vulnerável de mim. “Você é muito iludida. Quem vai querer ler isso? Ridícula! Todos vocês, olhem pra cá! Podem rir muito, porque essa Daniela é a pessoa mais ridícula que eu já conheci.” As pessoas se assustaram e eu encontrei o olhar preocupado da minha colega. Engoli o choro. Eu precisava ser forte. Levantei-me, tentando ficar um pouco menos baixa que ele. Sentada eu era mais vulnerável. “Desculpe, Júlio. Não era minha intenção causar qualquer desconforto para a empresa, ao ler por alguns minutos o meu texto, depois de terminar meu trabalho com quatro horas de antecedência. E, por favor, me desculpe por fazer o senhor gastar seus olhos tento que ler algumas linhas de algo tão desagradável. Peço licença aos queridos colegas, companheiros de três anos de trabalho. Devo me retirar e procurar um lugar mais humano para trabalhar.” Não sou boa em discursos. A minha vontade era de gritar e falar algumas duras verdades para ele. Mas sou assim, calma para os outros. Esse é um grande problema, guardo tudo. Peguei as minhas coisas e fui embora.
            Almocei com tanta fome, como há muito tempo eu não fazia. Senti os ombros mais leves e me senti estranhamente relaxada. Era um dia diferente, novo e eu estava gostando. De repente me senti inspirada. Peguei meu caderno e continuei aquele texto, o da noite anterior. Fiquei quatro horas sentada na praça de alimentação do shopping, escrevendo o que no futuro poderá ser um livro. Não vou me deixar abater, não por causa daqueles comentários do Júlio. Vi minha amiga Maria passando. Estava com a Nicole. Suspirei e fui até elas. Parece que fazia compras. Antes de começar as frases idiotas da minha “inimiga”, agarrei a minha melhor amiga e a abracei. Contei baixinho o que havia feito e ela suspirou de alivio. Ela me conhece muito bem. Falei qualquer coisa com a criatura sistemática e sai fugindo com a minha amiga. Pude ver a Nicole ferver de raiva, de ser deixada para trás. Maria e eu assistimos a um filme, o que há muito tempo não fazíamos. Compramos um pote de dois litros de sorvete e tomamos tudo dentro do cinema. Eu estava feliz. As coisas pareciam diferentes... Entramos em algumas lojas. Comprei um vestido. Permiti-me fazer isso. Eu tenho economizado cada centavo, esperando o momento certo para sair do trabalho. Não havia momento certo. Existia o hoje e eu resolvi mudar o rumo da minha vida.
            Fomos para casa. Queria mais tempo com a minha amiga, mas ela e o namorado teriam um jantar especial. Comemoração de aniversário de namoro. Eu realmente consigo “aturar” a irmã do namorado dela só por causa dos dois. Eu a amo e amo ver os dois juntos. Mas algum dia não vou aguentar e gritar um pouco com ela (esse dia está próximo). Passei o rascunho do meu texto para o computador. Olhei para a tela animada. O meu segundo livro estava criando vida. Senti uma onda de animação. Peguei um arquivo antigo, de dois anos atrás. Meu primeiro livro, meu bem mais precioso. Criei coragem e enviei para cinco editoras. Nada poderia piorar. Eu sentia esperança e alguma coisa arder dentro do peito. Ainda sinto. Tomei meu banho e sai para a caminhada noturna. Olhei para aquele céu estrelado, lindo e arrepiei. Era o começo de alguma coisa. Olho para o relógio do celular. O dia está acabando... Estou pronta para deixar mais um livro nesse banco da praça. Mas há uma energia diferente no ar. Eu poderia ficar aqui a noite toda, até amanhecer.
Em minha direção enxergo um vulto grande. Não estou com medo. Ele se aproxima ainda mais... Só consigo enxergar uns olhos brilhantes e animados. Ah, e um sorriso perturbador de tão lindo. Ele está na minha frente me encarando. Agora tenho medo. “Desculpe te assustar. Mas queria te conhecer. Tem bastante tempo que venho aqui e há alguns dias tenho te observado colocar esses livros... Li todos.” Sorrio. É ele! “Eu fico feliz que alguém mais os leia... Sou a Daniela. Prazer.” Estico a minha mão para um cumprimento e ele se senta ao meu lado. “Murilo. E o prazer é meu. Eu estou encantando desde o primeiro livro que encontrei aqui. E depois de te observar, o meu encanto só tem aumentado. Eu realmente estou curioso para conhecer você. Entender esse seu olhar de encanto ao olhar para os livros e de satisfação ao olhar para o céu. Que brilho maravilhoso, que serenidade.” Penso em como ele pode achar tudo isso, logo de mim que tenho passado tanto tempo perturbada, sem dormir e um pouco desanimada com o futuro. Mas acabo de perceber que quando estou aqui, lendo ou admirando o céu, eu esqueço tudo e começo a sonhar. “Se você quiser pode me entender fazendo o mesmo que eu. Nada que eu dissesse seria suficiente para explicar. Olhe para o céu e apenas sinta essa energia, essa noite magnífica. Se permita sonhar, flutuar em seus pensamentos mais intensos... Sinta.” Digo e ele segura a minha mão. Olhamos para o céu. Estou sozinha numa praça, com um homem desconhecido (e extremamente lindo e encantador), olhando para o céu... É inexplicável, é estranhamente bom. Eu poço ficar assim pra sempre. Sinto-me em paz, segura. Parece que o conheço há uma eternidade (e acredito que isso seja possível). Meia noite. E foram mais outras 24 horas, dentre tantas outras. Mas eu sinto que foi um novo dia, um recomeço. 

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