A intrusa
Você
já se sentiu como se estivesse deslocada e incomodasse alguém? É assim que eu
tenho me sentido há três meses. Isso é tão estranho, tão desconfortável. A
minha vontade é de sair correndo e me isolar. Sozinha, apenas incomodando a mim
mesma. Mas não consigo fazer isso. Eu já me acostumei... Tenho medo da solidão.
Tenho medo do que virar depois se eu desistir de tudo e fugir. Mas ao mesmo
tempo, não aguento mais. Estou sufocada. Poderia gritar tão alto que a cidade
inteira me escutaria. Ah, eu poderia fazer isso sim. Olho para o lado. Lindo,
moreno, sedutor, sorriso fatal. Pisca pra mim e depois volta os olhos para a
tela do notebook. MU-RI-LO. Pronuncio as sílabas do nome dele em minha mente. Meu
namorado. Meu concentrado namorado.
Murilo
e eu nos conhecemos através do meu primo, Fernando. Nos apaixonamos de
imediato. Não demorou muito e ele me pediu em namoro. Três encontros. Parecia
pouco tempo para algumas pessoas. Mas para nós foi o tempo suficiente pra
sabermos que queríamos a companhia um do outro. Uma paixão envolvente, uma
relação intensa. A cada dia que passava nos sentíamos mais e mais apaixonados.
Contei sobre toda a minha vida pra ele, porque eu me sentia a vontade. E ele me
contou tudo sobre a vida dele. Continuamos apaixonados, mas aí também surgiu o
amor. O sentimento que nos mantinha conectados. Estava tudo perfeito. Éramos um
exemplo de casal. Ainda somos para os outros que não nos conhecem intimamente. São
três anos de namoro com o Murilo. Três memoráveis anos.
Brigas?
Algumas. Brigávamos como grande parte dos casais briga. Por ciúmes e algumas besteiras.
No início ele era tão ciumento que eu cheguei a dizer que iria terminar. Depois
ele disse que iria mudar e conseguiu. Ainda era ciumento, mas mais controlado.
Dava pra aguentar, até porque eu também era ciumenta. No começo também a
relação dele com meus pais foi difícil. Não havia motivo nenhum. Apenas
protegiam demais a única filha. Foi bastante difícil, mas vencemos isso também.
Era paixão, era amor, era um desejo enorme de ficarmos juntos. Com ele eu me
sentia segura. Ainda me sinto. Isso não mudou.
Apesar
de qualquer coisa, eu o amo. Um amor bonito, maduro. Crescemos juntos. A paixão
não é a mesma. Não sei onde a perdemos. Talvez na rotina. Depois do primeiro
ano de namoro a paixão também sumiu. Mas em certo dia a encontramos de novo.
Não sei explicar. Simplesmente acordamos querendo o outro intensamente. O
segundo ano foi o melhor. Com certeza. Nos formamos na faculdade, mais tempo
livre. Ele estava menos ciumento. Fomos juntos para Buenos Aires. Boas
lembranças... Começamos a fazer planos. O casamento iria demorar, fizemos esse
acordo. Primeiro queríamos estabilidade financeira pra construir uma casa do
nosso jeito. Não nos importávamos muito com isso. Não tínhamos pressa. Nos
amamos, passamos momentos juntos, é isso. Não havia dúvida de que tínhamos pensamentos
parecidos. Era fácil resolver as coisas, sempre cedíamos um pouco pelo bem do outro.
Acho que é nesse ponto que somos um exemplo para quem olha de fora. Briga e
discussão em público jamais. Uma relação invejável.
Mas
acabou. Agora eu sinto inveja dos outros casais. Tem seis meses que o Murilo
conseguiu um emprego novo, com grandes chances de crescimento. Uma grande
oportunidade pra ele. O emprego dos sonhos. Estou muito feliz por ele. Só quero
o bem do meu namorado. Do homem que eu compartilho tantas lembranças boas. Mas
depois de um mês nesse trabalho ele mudou. E eu também mudei. Nosso tempo
juntos diminuiu. Isso eu aceito. É normal. Tenho que apoiá-lo. Ele quer mostrar
competência. E ele é muito competente. Eu sentia falta de mais tempo, claro.
Mas eu já sabia que no começo seria assim. Um bom emprego para no futuro
comprarmos a casa dos sonhos. Era o plano. Mas não falamos mais disso. Não
fazemos mais planos. Por quê? Não sei. Não preciso saber.
Era
a nossa rotina ligar no final do dia, quando não dormíamos juntos, e falar do
nosso dia. Era uma rotina que nos mantinha conectados. Nos últimos meses, mesmo
depois de terminar de ver tudo do trabalho, o Murilo não se mostra mais
interessado em fazer isso. Eu fico falando 20 minutos seguidos e ele apenas
concorda. Depois que eu falo tudo, pergunto como foi o dia dele. Ele diz “foi
bom”, “cansativo”, “legal”. Só isso. Até que eu parei de ficar falando sozinha.
Uma vez ou outra eu ligo e reclamo de alguma coisa. E quando estamos juntos, a
conversa não rende muito. Ele está sempre cansado e todo dia é sempre a mesma
coisa. Cheguei a pensar que ele tinha outra. Conheci uma colega de trabalho
dele, muito linda e aparentemente interessada nele. No dia que a conheci, e até
uns dias depois, fiquei com ciúme, muito. Mas os dias foram passando e eu
esqueci que ela existia. O ciúme morreu. Ontem mesmo ele me falou que ela o
convidou para o seu aniversário no final de semana. Não consegui me importar.
Eu
daria tudo para descobrir o que aconteceu e voltarmos a ser como antes. Eu o
amo e acho que ele me ama. Poderíamos dar um jeito de recuperar a paixão e o
interesse um pelo outro. Mas não tenho forças. Não mais. Nos últimos meses
tenho lutado sozinha. E a relação não é composta só por mim. Me sinto uma
intrusa na vida dele. E tem certos momentos que sinto que estou atrapalhando.
Eu fico com saudades do corpo dele, do coração, da mente e da voz, então peço
carinho. Geralmente ele não recusa, mas é tão estranho. Me sinto carente dele,
mas ele não está carente de mim. Pelo menos não demonstra. Me sinto abandonada,
vazia, sozinha numa relação de duas pessoas. Mas tenho medo de terminar e
piorar. De me sentir mais vazia sem a presença dele.
Ele
se levanta e vai até a cozinha. Olho para o meu namorado e sinto dor. Quero carinho.
Quero que ele me escute e que fale comigo. Quero que compartilhe sua vida
comigo, como antes. Ele volta. “Renata, meu amor, você está assistindo televisão?”
Ele me pergunta. Fiquei perdida em meus pensamentos que até me esqueci de
prestar atenção no filme. “Vou desligar, não estou assistindo mais”. Desliguei.
Ele está bebendo uma taça de vinho e trabalhando com algum projeto do
escritório de advocacia. Por que deixamos isso acontecer? Era tão bom... Agora
que eu percebo que ele não me ofereceu o vinho. Ele sabe que eu amo vinho.
Parece delicioso. Isso não pode continuar. Cansei de ser a intrusa. Cansei de
estar sozinha ao lado dele. Não dá pra piorar. Eu o amo sim. Mas não posso
viver só do meu amor. E eu não consigo mais lutar por isso SO-ZI-NHA. Novamente
pronuncio mentalmente as silabas de uma palavra. Pego a taça de vinho da mão
dele. Ele me encara e não fala nada. Dou um longo gole e me levanto. “Vou
embora, Murilo. E acabou para nós. Obrigada por esses três anos. Nunca vou te
esquecer e nem deixar de te amar. Mas não quero viver sozinha essa relação.
Cansei de ser uma intrusa na sua vida. Depois que você estiver com menos
obrigações no trabalho nós conversamos. Eu vou mesmo voltar. São três anos,
precisamos conversar. Mas acabou. Te amo. Até logo!”
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