quarta-feira, 1 de abril de 2020


Lista Aleatória

Mais um dia daqueles. Será longo, será puxado, muito cansativo. Um belo início de semana, mais uma não aguardada segunda-feira. Mas não posso negar que, apesar de não estar muito animada para mais um dia de trabalho, o dia em si está realmente lindo. É verão, mas não está muito calor. Os raios de sol atravessam a minha pele de forma serena, delicada. Me sinto abraçada, quase bem o bastante para me esquecer da reunião que terei à tarde. Não pensarei nisso agora, mesmo que esteja muito ansiosa para liderar a equipe pela primeira vez. A ideia é boa, fizemos um bom trabalho. O cliente vai gostar. Preciso relaxar. Olha ali. O Felipe, porteiro do meu prédio, parece muito relaxado. Logo ele que passa o dia inteiro fazendo de tudo um pouco. Não sei como ele dá conta. Será que ganha o suficiente para compensar tanto esforço? Eu duvido um pouco. Agora, por exemplo, ele está cuidando do jardim, que, inclusive, está admirável. É o único espaço bonito dessa enorme massa cinzenta onde eu moro. “Bom dia, Seu Felipe!”, digo. “Bom dia, Srta. Alice!”, ele responde com muito bom humor. Agradeço e vou em direção ao portão. Olha, mais um trabalho do incansável Felipe. Ele consertou o portão que estava rangendo. Balanço a cabeça e sorrio. Aquele homem não existe.
            A parte boa de morar aqui é a facilidade de acesso ao ponto de ônibus. Menos de dois minutos e já estou esperando a condução. Será um dia daqueles... Pra mim e para a moça ao meu lado, que não para de andar de um lado para o outro. Está preocupada. Talvez atrasada. Definitivamente atrasada e preocupada. Estranho, acho que ela é nova na vizinhança. Eu conheço praticamente todas as pessoas que saem para trabalhar nesse horário. Ela pode ter se mudado recentemente ou, simplesmente, ter mudado o horário de trabalho. Eu poderia me apresentar... Meu ônibus. E a rotina continua. Não vejo a hora de voltar. Tenho planos para a noite. Inesperado, eu diria. Não sou assim, mas vou correr o risco. Felizmente um lugar vago no ônibus. O trajeto não é tão longo, mas eu adoro sentar. Não posso ver um banco que meu corpo me puxa. Ótimo, hoje não esqueci o fone de ouvido. Vou poder me distrair. A reunião, a noite diferente, muita coisa na cabeça.
            Coloco o fone, dou o play. Opa, lista aleatória. Estou tão acostumada a escutar as mesmas músicas, a mesma sequência. Eu gosto da minha rotina, me sinto bem assim. Então cliquei sem querer no aleatório. Nunca faço isso. Mas já foi. Vamos ver o que me espera. Ah! Conheço a música. Muito tempo sem escutá-la. Mas lembro de gostar bastante. Sinceramente, não sei se gosto da mesma forma... Bom, é gostosa. Tem um começo lento, palavras bem destacadas. É delicada, mas é forte. Ah! Eu gosto sim. A melodia me faz sorrir involuntariamente. Eu gosto sim. Me faz ter a mesma sensação de calor quando eu estava sob o sol. Eu gosto muito. Surpreendente. O aleatório pode ser surpreendente. Não queria. Por escolha própria não teria clicado no aleatório. Gosto de controle. O inesperado nem sempre funciona pra mim. E assim será a noite, incerta. Estou nervosa. Mas a música... Ah! A música. Minha mão toca a janela no ritmo da música. Um dos meus pés batem no chão na tentativa de completar o ritmo. Minha cabeça está doida pra balançar de um lado para o outro. Devagar ela se entrega a música. A melodia cresce. O ritmo aumenta. O refrão começa e eu preciso segurar as palavras dentro da boca. Um som começa a sair mesmo com a boca fechada. Sorrio. Estou inundada pela música. Os meus movimentos não estão mais sob controle. A música me leva a uma sensação deliciosa, inesperadamente boa. Meu corpo encontra seu ritmo em movimentos involuntários. Não ligo. Não mais. É muito bom. Olho ao meu redor. Acho que ninguém me observa. Canto o refrão final. A minha voz não sai, mas pronunciar a letra com os lábios já é suficientemente satisfatório. Me entreguei completamente. Não esperava que uma simples música no aleatório poderia me fazer tão bem. Devagar, no seu ritmo me conquistou e tomou conta de mim.
            Assim como o inesperado amor. E que amor! Sorrio calorosamente. Devo parecer uma boba. Eu estou tão acostumada a ter tudo bem definido, sob o meu controle... Totalmente inesperado. Eu nunca tinha ido à um encontro às cegas. Tinha pavor. Pavor da ideia de não ter controle da pessoa que poderia fazer parte da minha vida. Me dava medo. Ainda dá. Eu sempre tive encontros e conheci pessoas, romanticamente falando, por inciativa própria. Me dava muito medo deixar outra pessoa “escolher” por mim. Mas de forma inesperada me rendi. Da mesma forma que aceitei continuar com a lista de músicas no modo aleatório. Aceitei ir a um encontro às cegas. Me surpreendi. E de lá pra cá continuo me continuo me surpreendendo todos os dias. De uma forma boa, com certeza. Ainda tenho medo, mas quero continuar e descobrir até onde podemos chegar com esse amor. Um amor que vem crescendo. Chegou de forma inesperada. Foi devagar, delicado, mas forte e intenso. Com seu ritmo foi me cativando, tomando conta de cada parte do meu corpo, assim como do meu coração. Tenho medo, mas não o bastante para me fazer desistir dele. Porque ele é incrível, único e parece muito certo. Eu não esperava, não escolhi. Mas me abri e me deixei envolver. E hoje não tenho vergonha de dizer que estou amando. Eu não precisava, estava bem. Mas hoje escolho continuar. Ele não completa. Ele soma. Ele expande e deixa tudo ainda mais lindo e repleto de cor. Ele incendeia meu coração. Eu o amo. Eu o amo! Surpreendentemente, inesperadamente e intensamente. Eu amo.
Minha melhor amiga e parceira de trabalho me vê e me espera. “Bom dia, Alice!”, ela diz. “Bom dia, Júlia! Estou nervosa. Será que eles vão gostar de mim?”, digo. Estou realmente ansiosa com a noite. “Meus tios vão amar você, assim como eu e o Leonardo te amamos”, ela diz e eu sorrio. Eu amo o Leonardo. Muito. “Meu amor aleatório”.